Andei, a passos largos, porque tinha pressa. De que ainda não lembro. Lembranças deixam marcas indeléveis em nossas vidas, e pouco gosto de tê-las. Esqueci de como se faz isto. Mas, enfim, andei, dito já, a passos largos, porque tinha pressa. De que ainda não me lembro. Não insistam.
Só sei que por onde passei, a passos largos, diga-se de passagem. Vi muito, vivi muito, experimentei muito, sorvi muito, troquei muito. Tão intensa e vividamente quanto podia ser isto em uma pessoa.
Ali naqueles meus cinco anos, em lugar pouco enveredado, jardineiras passando – adorava ver as jardineiras – caminhava ao lado de meus irmãos, não tão mais velhos em direção do sítio que meu pai cuidava, e como cuidava. Dava o sangue por aquele lugar que nem era seu, foi assim que aprendi a cuidar do que nunca foi meu, vendo aquele homem com mãos firmes e fortes, calejadas cuidar do que não era seu. Mas com tanto afinco de que como fosse. É assim que se aprende as coisas, vendo, vivendo, vivenciando a história de outros.
Enfim, a passos largos, seguia com meus irmãos em direção aquele sítio que meu pai cuidava como se fosse seu. Já era meio tarde, talvez fosse inverno, porque a medida que andavámos a passsos largos, rapidamente escurecia naquela estrada por onde passavam as jardineiras.
Vale dizer e não posso afirmar isto, pois já dito acima, tinha cinco anos apenas, muitas eram as histórias de colocar medo nos meninos do interior e eu era um menino do interior naquela época, e isto era assustador para qualquer menino do interior como eu. E não sei porque e é sempre nestas horas que nossa memória começa a nos pregar peças comecei a lembrar destas histórias.
A passos largos, ainda mais largos ainda, pois acredito que meus irmãos também começaram a lembrar das mesmas histórias, iamos em direção ao sitio que meu pai cuidava como se fosse dele. Não se pode imaginar como a imaginação de uma criança é infinitamente perniciosa nestes momentos. Na penunbra que brota com o cair da tarde, galhos se tornam chifres (até hoje, não sei de que exatamente), pedras se tornam animais se arrastando, pedaços de árvores caídos se tornam animais saindo das matas a volta da estrada e assim por diante.
Acho que a imaginação dos mais adultos também acompanham a das crianças, pois o que era a passos largos nossa caminhada, já parecia mais uma pequena marcha atlética sem nenhuma regra. Pequeno que era, me sentia quase que arrastado por eles. Ah, como a imaginação é perversa!
Para completar nosso crescente pavor vespertino, pouco antes de chegar a entrada do sitio que meu pai cuidava como se fosse dele, havia uma curva acentuada. A tarde já se confundia com a noite nesta altura de nossa caminhada a passos acelerados. De repente, um sobressalto tomou conta de um de meus irmãos. Estaqueou como um daqueles caibros de peroba fincados no chão a força de bate-estaca mecânica. Juntos, paramos eu e meu outro irmão.
Não precisa dizer que neste momento, já não sentia minhas pernas, minhas mãos e meu coração, e naquela época nem sabia que ele existia e pra que, já nem batia mais, tocava uma bateria de escola de samba inteira. A boca, parecia estar sem receber um só gole de água a semanas. Por que ele parara tão bruscamente? Nem imaginava, mas nem perguntei, o pavor era tanto que achava sinceramente que se abrisse a boca, algo, sei lá, algo, iria acontecer. Que imaginação!
Tudo isto deve ter durado uns trinta segundos. Para mim, foi algo próximo de duas horas esta freada brusca, tamanha era a minha ansiedade, minha expectativa, meu tormento naquele momento. Passada esta angústia ele finalmente perguntou se nós viamos o que tinha a nossa frente.
Eu não via nada, não queria ver nada, eles que eram mais velhos que vissem, fosse lá o que fosse para ser visto. Por isto temos irmãos mais velhos para verem estas “coisas”. Mas ele insistia na pergunta, a qual foi respondida pelo outro com um sei lá, ver o que, o que tem? Hoje olhando para tráz avalio o quanto nós somos traídos por nossa vontade de ver o que queremos ver nos momentos mais terríveis de nossas vidas.
Assim foi naquele dia, naquela hora. Nestes poucos segundos, e nisto a natureza é perspicaz e arguta como só ela consegue ser, escureceu totalmente. Imaginem, a quarenta e três anos atráz, numa cidadezinha do interior, indo a um sitio que meu pai cuidava como se fosse dele, numa estrada de terra, cercada por mata dos dois lados, onde passavam as jardineiras. Não deu para imaginar?! Pois é não dava para imaginar. Mas nós conseguimos imaginar.
Meu irmão ameaçou voltar, o outro mais novo um pouco, mas nem tanto, ficou em duvida e eu. Eu?! Que tinha eu, só tinha cinco anos, o que eles fizessem, eu aceitaria, é para que isto que temos irmãos mais velhos, certo? Não via nada, só não sentia minhas pernas, minhas mãos e meu coração já nem batia, acho eu, fora a minha boca que parecia ter a pura sensação de ter sido acometida de uns três meses de dose máxima de carbamazepina, tal a secura que ela demonstrava.
Nisto, sentido contrário a nossa trajetória veio um carro, faróis acesos, iluminou por um breve instante o que estava a nossa frente. Nisto meu irmão começou a rir, mas com tanta intensidade que pensei que ele estava tendo um ataque de qualquer coisa. E entre suas gargalhadas dizia algo que nos era totalmente ininteligível. Mas como o riso contagia, e a adrenalina da ansiedade e do pavor é a mesma do destempero da felicidade e alegria, em poucos segundos, estavámos os três rindo despudoradamente.
Após pararmos, ele se vira e diz para seguirmos em frente, era apenas um tronco na curva que dava a entrada da porta do sitio que meu pai cuidava como se fosse dele e não um boi como ele achara desde o começo. Boi? Que boi? Não era um monstro que nos paralisara? Um boi? Ora, isto era inadimissível para mim que tinha cinco anos. Como alguém poderia ter medo de um boi parado na estrada de uma cidadezinha do interior, numa estrada de terra, onde passavam jardineiras, cercada de mata dos dois lados e escura como breu.
Só nós, nossa imaginação e esta situação para gerar tanto pavor. Mas é sempre assim, em situações de nossa vida, qualquer tronco de árvore colocada em uma curva, num dia escuro e tenebroso, em uma cidadezinha do interior, numa estrada cercada de mata dos dois lados pode se tornar um enorme animal que invade nosso imaginário e nos força sermos crianças de novo.
Afinal são apenas reminiscências.
29/12/2009 – 23h21m
Guilherme Dias
"...o quanto nós somos traídos por nossa vontade de ver o que queremos ver nos momentos mais terríveis de nossas vidas..."
ResponderExcluir"...em situações de nossa vida, qualquer tronco de árvore colocada em uma curva, num dia escuro e tenebroso, em uma cidadezinha do interior, numa estrada cercada de mata dos dois lados pode se tornar um enorme animal que invade nosso imaginário e nos força sermos crianças de novo..."
Não preciso nem dizer o qto essas duas frases mexeram comigo...rs